quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Memória, verdade e ficção


Para todas as pessoas, é difícil separar o que é biografia e memória daquilo que não passa de ficção. Com o tempo, alguns reinventam os episódios mais significativos de suas vidas, colorem os melhores momentos e esvaziam de significado aquela antiga dor. Outros fazem exatamente o contrário: cultivam a dor e esquecem a alegria.
Os críticos literários ainda em atividade, no Brasil de hoje, esquecem esse hábito das pessoas comuns e insistam na mania de virar um romance pelo avesso, a fim de separar a ficção da realidade vivida pelo autor. Trata-se de exercício quase sempre ocioso, pois o próprio crítico acaba por tecer ficção sobre ficção.
E os leitores, saudados como a razão de ser de romancistas e críticos, perdem o fôlego e já nem sabem onde vão amarrar a sua curiosidade.
Há grande semelhança entre esse tipo de crítico e os degustadores profissionais de vinho, que adoram chamar a si mesmos de “connoisseurs”, porque aprenderam a misturar ficção e realidade, quando descrevem odores e sabores que são os únicos a perceber.
A verdade é que os críticos reinventam os livros e os experts analisam vinhos que só existem em sua imaginação. E os amadores, por mais que se esforcem, jamais degustam o encanto anunciado, mas secreto, do livro, assim como o sabor dos vinhos.
Melhor seria que críticos e “sommeliers” fossem um pouco mais fiéis à realidade dos romances e dos vinhos, evitando confundir o freguês com especulações desatinadas e sem conteúdo.
Utilizar outros livros do mesmo autor e outros vinhos da mesma safra e do mesmo produtor para comparar com aquilo que se tem nas mãos e nos lábios é legítimo. Mas fazer dessa comparação um exercício de ficção, carregado de referencias que só especialistas dominam, é pura farsa.
Na literatura, todo romance é ficção e autobiografia ao mesmo tempo. O autor pode afirmar, com sinceridade, que os personagens não têm correspondencia na vida real (na família ou entre amigos e inimigos). Mas nega porque levou a mistura de realidade e ficção além do ponto em que seria possível separá-las.
Por isso, também desperdiça tempo quem se dedica a investigar o que é real na ficção ou o que é ficção em livros de memórias. O sujeito que escreve uma autobiografia com a honesta disposição de se manter fiel aos acontecimentos não escapa à tentação de reinventar ou colorir certos fatos. Se todos fazemos isso nas rodas sociais, como esperar fidelidade absoluta de quem se arrisca a descrever os melhores e os piores momentos de uma vida longa e bem ou mal vivida? É pedir demais, meninas e meninos. Não esperem tanto das autobiografias.


Tião Martins

Um comentário:

  1. Fernanda,
    a vida é uma ficção mesmo ..
    e acho que sobrevivemos e transcendemos porque temos, justamente, essa capacidade de reinventar, reacomodando, os episódios já vividos, como vc disse ..

    adorei teu blog, achei bastante inspirado em Foucault, que eu adoro ...
    virei mais .. bjos

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