terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O testamento da indignação



Não é incomum, na França, que certos livros provoquem uma tempestade cerebral e um bate-boca nacional entre jornalistas, intelectuais, políticos e a imensa massa de leitores e polemistas. Os franceses adoram discutir a França, os pensadores, os livros, os erros e as glórias do passado e os caminhos do futuro.
Vem do tempo de Montesquieu esse prestígio atribuído a livros e pensadores, mais comum na França que em qualquer outro país. Isso não significa que os franceses são mais intelectualizados que ingleses, alemães, espanhóis ou italianos. A diferença é que nenhum outro povo extrai tanto prazer do debate público de idéias.
É com essa visão sociológica que se deve analisar o mais recente fenômeno editorial francês: um livrinho de 32 páginas, quase um panfleto, vendeu mais de um milhão e 300 mil cópias, entre outubro e fevereiro. É verdade que só custa o equivalente a oito reais, mas obras desse preço você encontra até na periferia de Paris. E nenhuma atrai tanto interesse quanto “Indignez-vous” (“Indignai-vos”), o livreto assinado por um embaixador de 93 anos, Stéphane Hessel.
A novidade é que o livro não mobilizou só os franceses. Após o êxito em Paris, editores da Espanha, Portugal, Turquia, Estados Unidos, Escandinávia, Coréia do Sul, países do Leste europeu e até do Brasil adquiriram o direito de republicá-lo. Já se pode dizer que será um fenômeno editorial quase tão extenso, geograficamente, quanto o livrinho vermelho do presidente Mao, com a diferença de que não fala de revolução, mas de protesto pacífico contra a mentira e o engano.
Hessel afirma que os povos do mundo não devem aceitar passivamente a atual ditadura financeira e propõe como estratégia a desobediência civil a decisões, leis e reformas políticas e econômicas que nascem nos gabinetes dos grandes bancos e das corporações industriais e comerciais de porte mundial, produzindo repercussões negativas na vida de quase todos os habitantes do planeta.
O autor clama por mudanças políticas, econômicas e sociais que devolvam ao povo e ao Estado francês (e a todos os demais) a autonomia de decisão que era um dos fundamentos teóricos das democracias ocidentais, a partir dos anos 50 do século passado.
Stéphane Hessel não é um embaixador igual aos outros. Para começar, nasceu em Berlim, de pai alemão e escritor. Naturalizou-se francês aos 20 anos de idade, participou da Resistência, na II Guerra Mundial, foi preso e torturado em campos de concentração na Alemanha e, finda a guerra, foi um dos redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Nos últimos anos, tem sempre adotado posições contrárias às do governo Sarkozy e em defesa dos sem-teto, dos imigrantes ilegais e da Palestina. E, nesse período, a esquerda francesa e seus intelectuais andaram apáticos e sem fôlego. Devido ao esvaziamento da oposição, Hessel ocupa agora o centro do palco, mas a idade o impede de ser uma referência duradoura.
O êxito do livro confirma um drama que o planeta já identificou: a carência de lideranças inovadoras e criativas, no Ocidente e no Oriente. Com propostas humanistas e generosas que lembram o Camus de “L`homme revolté”, Hessel demonstra que os dirigentes políticos estão nus, como o rei da fábula.
A questão é saber quem será o legítimo herdeiro desse testamento da indignação.

Tião Martins

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